Há quem veja nas recentes manifestações que se alastraram pelo país o sintoma mais agudo de uma crise de representatividade. Como nasceu essa crise? Qual o papel dos meios de comunicação nos desdobramentos e na interpretação desse novo acontecimento social? Quem esteve nas ruas? O que querem e esperam de quem os representa? Que mudanças institucionais essas manifestações devem provocar?
Certamente os problemas na organização da Copa e a tentativa de aumento das passagens em São Paulo acenderam o estopim das manifestações. Porém, ao se olhar para as ruas tomadas de gente, o que se viu foi também o sintoma mais agudo de um problema crônico de crise de representatividade. Essa crise se desenvolve a partir de pelo menos duas condições: (i) a difusão da imagem dos políticos como aproveitadores, incompetentes, ladrões, cujos privilégios e salários superam todos os limites do razoável e da decência. Sendo assim, eles não nos representam, nós que trabalhamos muito, sofremos com os péssimos serviços públicos e ganhamos pouquíssimo. Tal imagem é bastante difusa entre a população, independentemente dos níveis de renda, com o detalhe de que, embora o poder judiciário também permita os privilégios exorbitantes e a incompetência entre seus quadros, a imagem parece "colar" muito mais nos políticos. Talvez pelo fato de que as eleições e a posterior decepção com os eleitos caracteriza um compromisso explicitamente assumido com o povo e sistematicamente desrepeitado. (ii) Os partidos políticos, desde o período de redemocratização, não souberam conciliar as suas lutas pelo poder com uma renovação contínua de suas bases. Daí nasceu uma nova geração de brasileiros e brasileiras, sobretudo - mas não exclusivamente - das classes B e A, que encontraram no mundo virtual da internet os espaços inéditos de discussão e mobilização social.
A maneira como os meios oficiais de informação (Globo, Record, SBT, Veja, Estadão, Folha de São Paulo) filtram e narram o que ocorreu torna muito difícil saber até que ponto o relato construído por eles reflete o que de fato se passou nas ruas. Isso, por si só, constitui-se num fator decisivo para os desdobramentos desse acontecimento social. Pois, por um lado, há indícios de que pelo menos uma parte dos manifestantes hostilizou as grandes empresas de comunicação. Veículos do SBT e da Record foram queimados, jornalistas da Globo precisaram de segurança privada reforçada para cobrir as manifestações de perto. Porém, por outro lado, essas mesmas empresas de comunicação, sobretudo através da TV e do rádio, continuam tendo uma imensa penetração nos lares brasileiros e exercem uma real influência sobre o significado que as manifestações vão ganhar. Aqui me vem à mente a ladainha interminável dos âncoras do noticiário televisivo a repetir: uma maioria pacífica e apartidária de manifestantes contra uma minoria de vândalos e criminosos. Com o detalhe de que a queima de bandeiras de alguns partidos não foi caracterizada como ato de vandalismo.
Quem foi para as ruas nessa última semana? Por acaso, eu me encontrava em Belo Horizonte, trabalhando no campus da UFMG, próximo ao estádio do Mineirão. Pude ver jovens estudantes da UFMG conversando sobre suas participações nas passeatas e até me deparei no centro da cidade com um grupo de manifestantes que caminhavam para a Praça Sete com cartazes e bandeiras do Brasil. O que vi me deixou a impressão de que a grande maioria dos participantes eram estudantes universitários e do ensino médio, provavelmente pertencentes às classes A e B, sem vínculo com partidos políticos, com cartazes protestando contra o preço das passagens de ônibus, contra a corrupção e contra os gastos com os eventos esportivos internacionais realizados no Brasil.
Escutei hoje de manhã na TV o filósofo Luis Felipe Pondé contrastar os perfis sociais dos membros da classe C com os membros das classes A e B. Segundo ele, os primeiros teriam uma compreensão mais "moral" (palavras suas) da política e dos políticos, tendendo a personalizar os problemas da corrupção e da má qualidade dos serviços públicos. Além disso, os membros da classe C teriam um modo de vida mais comunitário, no sentido de que, dada a fragilidade de sua situação econômica, eles adotariam a estratégia da ajuda mútua entre parentes, vizinhos, amigos e colegas de trabalho. As classes A e B, por sua vez, tenderiam a formular de modo mais "abstrato" (novamente palavras do Condé), ou em termos estruturais, os problemas que viraram motes da mobilização. Também assumiriam um modo de vida mais individualizado que, na sua versão de direita - e isso já é um acréscimo meu -, incorporaria os valores e teses da meritocracia e do liberalismo econômico, enquanto na sua versão de esquerda aprovaria o aperfeiçoamento dos mecanismos de distribuição de renda, ao mesmo tempo em que condenaria a supremacia do poder econômico (grandes bancos, grandes empresas dos setores de transportes e imobiliário, etc.) em detrimento dos valores da cidadania e da ampliação de direitos. Desse último grupo faria parte, por exemplo, o Movimento Passe Livre.
O que vai acontecer daqui para a frente? Na minha opinião, o pior que pode acontecer é que esse movimento ainda muito difuso não construa em breve demandas mais específicas. Pois sem poder mobilizar as pessoas em torno de solicitações mais precisas dirigidas aos poderes da República, a mobilização perderá força, terá morte lenta e frustrante. Do outro lado das grades de proteção, os membros do Executivo e do Legislativo não saberão como responder a reivindicações tão genéricas - aliás, as preferidas dos demagogos e dos que não querem mudar nada. Com isso, a crise de representatividade continuará irresolvida, aumentando a fragilidade do nosso já tão insatisfatório regime de democracia representativa.
Já o melhor que poderia acontecer, também na minha opinião, seria, em primeiro lugar, os partidos promoverem uma profunda oxigenação de suas entranhas, permitirem a renovação dos seus quadros a partir das bases e aproveitarem melhor as possibilidades oferecidas pela internet. Em segundo lugar, os três poderes, em suas três esferas, aperfeiçoarem os mecanismos de participação direta da população nas decisões políticas.
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