Impressionante como países com histórias tão semelhantes sob vários aspectos tenham tanta dificuldade de se reconhecerem como irmãos. Na verdade, creio que isso se aplica sobretudo ao Brasil na sua relação com os vizinhos. Parece haver muito maior integração entre os países andinos, por exemplo, ou entre a Argentina e o Uruguai. Mas demora para um país continental conseguir girar o rosto do litoral para o interior.
Nova arquitetura financeira regional, por Luciano W. Severo
Enviado por luisnassif, sab, 01/06/2013 - 10:42
Por Assis Ribeiro
Nova arquitetura financeira regional
Os próximos anos podem ser definitivos para o processo de integração regional. Passada uma década de governos progressistas, é crucial que se consolidem as propostas de transformação
Luciano Wexell Severo
A escuridão da década de noventa
A história econômica das últimas décadas do século XX
na América Latina pode ser resumida em duas palavras: dívida e crise.
Os países da região contraíram imensas dívidas externas na década de
setenta. Na década de oitenta, para tentar pagá-las, passaram por um
tremendo processo de malabarismo macroeconômico. Mesmo assim, só
aumentaram os compromissos financeiros com os credores internacionais e a
drenagem de recursos para fora. Na década de noventa, como uma
exigência da renegociação das dívidas, foram impostas as chamadas
políticas do “Consenso de Washington”, que abriu as portas da região
para as importações, o capital especulativo e a política de privatização
e desnacionalização.
Foram tempos de hegemonia absoluta do deus Mercado. A
liberalização do comércio, o livre fluxo de capitais, as altas taxas de
juros e as taxas de câmbio reais valorizadas foram fatais. Foi como
colocar um cigarro aceso na boca de um sapo. Apenas entra fumaça. Uma
hora o sapo arrebenta. No caso das economias da região, o problema era
um pouco diferente e a explosão veio através de contas externas. Havia
mais dinheiro saindo do que entrando. O capital especulativo chegou
atraído pela elevada remuneração dos papéis das dívidas. Foi incentivado
o desmantelamento da produção e da estrutura de emprego por meio do
processo de venda/doação das empresas estatais e da submissão do capital
privado nacional ao estrangeiro. As importações foram resultado claro
da taxa de câmbio real valorizada e da destruição do aparato industrial
interno. As remessas de lucros ao exterior foram uma consequência óbvia
da presença dominante do capital estrangeiro em setores estratégicos da
economia.
Ao longo da década de noventa, veio a conta: as
crises financeiras e os déficits na balança de pagamentos. Em nome da
derrubada da inflação e da “modernização” das economias construídas
durante o período considerado negativamente como “populista” e
“desenvolvimentista”, os governos neoliberais promoveram o crescente
acúmulo de déficits. Como resultado, muitas economias da região
quebraram. Foram os casos da Venezuela de Rafael Caldera, da Bolívia de
Gonzalo Sánchez de Lozada e do México de Carlos Salinas de Gortari,
todos em 1994, e do Paraguai de Juan Carlos Wasmosy em 1995. Fernando
Henrique Cardoso quebrou o Brasil três vezes entre 1994 e 1999; Jamil
Mahuad, que elevou o dólar a moeda oficial, quebrou o Equador em 1999; e
Andrés Pastrana, o mesmo que assinou o Plano Colômbia com Bill Clinton,
também quebrou seu país em 1999. Na Argentina, Menem Carlitos, Domingo
Cavalo (Sunday Horse) e Fernando de la Rua geraram a profunda crise
entre 1999 e 2002. Demorou pouco para Jorge Batlle explodir a economia
do Uruguai em 2002.
Os novos governos da década de 2000
Há uma vasta literatura que associa os desastres
econômicos da década de noventa com a chegada dos governos progressistas
da década de 2000. Estes últimos representaram uma luz frente à
escuridão do “pensamento único” que vinha do Norte. Os novos governos
sintetizaram o desejo popular de resgatar a própria dignidade. Daquelas
revoltas populares contra os pacotes do Fundo Monetário Internacional
(FMI) e seus representantes internos emergiram propostas alternativas e
contra hegemônicas. Cada país passou a adotar medidas parecidas
relacionadas com a maior intervenção do Estado, com o desenvolvimento,
com o pagamento da dívida social e com a proposta bicentenária da
integração regional. É sempre bom lembrar que sem entender o caos
econômico, político e social gerado pelas políticas dos anos noventa não
podemos compreender os atuais governos, suas propostas e os seus
tremendos desafios.
Hoje mais do que nunca, tomando em conta os crônicos
problemas de restrição externa que historicamente afetam as balanças de
pagamentos dos países sul-americanos, é necessário que as recentes
iniciativas de desenvolvimento econômico e de integração regional deem a
devida importância para as fontes de financiamento próprias e as linhas
de cooperação macroeconômica fora do âmbito neoliberal.
Não há dúvida de que, na última década na América do
Sul, houve uma mudança de estratégia para a integração. Os países
deixaram a defensiva e partiram para a ofensiva. Desde a ascensão de
Chávez, Lula e Kirchner, por exemplo, foi formalizado o acordo entre o
Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) e a Comunidade Andina de Nações (CAN),
gerando o futuro embrião da Comunidade Sul-Americana de Nações (CSN),
criada em 2004. Ao mesmo tempo, Venezuela e Cuba criaram a Alternativa
Bolivariana para as Américas (ALBA), como um contraponto à Área de Livre
Comércio das Américas (ALCA). A proposta concebida por Chávez e Fidel
foi baseada em critérios como soberania, solidariedade, reciprocidade e
complementaridade. Pouco a pouco, o bloco se expandiu, formalizando-se
em 2009 a entrada de Equador, São Vicente e Granadinas e Antígua e
Barbuda como membros plenos, ao lado de Bolívia, Nicarágua, Dominica,
Honduras e os dois países pioneiros.
Como parte dessa virada para dentro, em 2005, na IV
Cúpula das Américas, em Mar del Plata, foi derrotado projeto americano
da ALCA. Com dificuldade, mas foi derrotado. É bom lembrar que a
rejeição daquela proposta de anexação não era um consenso. A declaração
final do encontro explícita duas posições muito diferentes. Enquanto
alguns países levantaram a possibilidade de continuar as discussões
sobre a ALCA, as intervenções de Chávez, Lula, Tabaré Vásquez e Kirchner
barraram essa ideia. A posição altiva dos líderes sul-americanos foi
expressa da seguinte forma no documento: “Ainda há não condições
necessárias para um acordo de livre comércio equilibrado e justo, com
acesso efetivo dos mercados, livres de subsídios e práticas de comércio
distorcidas e que tome em conta as necessidades e as sensibilidades de
todos os sócios, assim como as diferenças nos níveis de desenvolvimento e
no tamanho das economias”.
Naqueles anos de aumento dos preços internacionais
das commodities, de intenso crescimento econômico global e de melhores
condições financeiras, surgiram várias iniciativas comuns. Em 2007, a
CSN passou a se chamar União das Nações Sul-Americanas (UNASUL). Esta
organização, composta pelos 12 países da América do Sul, assumiu o papel
de promover a integração em diversas áreas, seja comercial, de
infraestrutura, financeira, educacional, de saúde ou de ciência e
tecnologia.
Neste contexto, dentro da estrutura da UNASUL, em
2010, formalizou-se a criação do Conselho Sul-Americano de Economia e
Finanças (CSEF). Entre os objetivos deste conselho estão o “uso de
moedas locais e regionais nas transações comerciais intra-regionais”,
trabalhar com “sistemas de pagamentos multilaterais e de crédito”, criar
um “mecanismo regional de garantias, para facilitar o acesso a
diferentes formas de financiamento’, aprofundar a “coordenação dos
Bancos Centrais em relação à gestão das reservas internacionais”,
considerar a adoção de “mecanismos de coordenação de recursos
financeiros... para atender as demandas de projetos de desenvolvimento e
integração”, impulsionar um “mercado sul-americano financeiro e de
capitais”, desenvolver “mecanismos de monitoramento conjunto para os
fluxos de capitais... em caso de crises de balança de pagamentos” e
promover “mecanismos de coordenação de políticas macroeconômicas”.
A Nova Arquitetura Financeira Regional
Desta maneira, dentro do CSEF, ganhou força a
proposta de Nova Arquitetura Financeira Regional (NAFR), que de largada
já resultou em uma forte aproximação dos Bancos Centrais da região. A
partir dessas reuniões, foram resgatadas antigas ideias, como constituir
um Banco do Sul e um Fundo Monetário do Sul, como impulsionar o
comércio intra-regional com moedas locais e formar um mercado regional
de títulos públicos. Vale comentar que muitas destas iniciativas e
medidas foram apresentadas pelos governos do Equador e da Venezuela.
Este último país, por exemplo, usou seus elevados saldos comerciais,
obtidos com as exportações de petróleo, para adquirir títulos da dívida
pública argentina e equatoriana.
Neste momento de aceleração das mudanças, é
importante que as ações promovidas pela NAFR sejam conhecidas e
estudadas, até mesmo como uma forma de melhorá-las e potencializá-las.
Como resultado dos seus primeiros passos já houve um visível progresso
inicial. Agora parece essencial que as discussões e os estudos caminhem
especialmente em três direções:
1) A criação de instituições de crédito de longo
prazo (entender as funções do Banco do Sul e o atual papel assumido pelo
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social do Brasil, BNDES).
A importância de contar com fontes próprias de financiamento
justifica-se, entre outros pontos, pelo fato de possuir autonomia de
reação nos momentos de restrição de liquidez internacional. Além disso,
os países se libertam das exigências e contrapartidas neoliberais
impostas pelas instituições de financiamento tradicionais;
2) A manutenção e promoção de acordos de swap de
moedas (como o Convênio de Créditos Recíprocos -CCR da Associação
Latino-Americana de Integração -ALADI, o Sistema de Moedas Locais -SML
do Mercosul e o Sistema Único de Compensação Regional de Pagamentos
-SUCRE dos países da ALBA). Estes instrumentos permitem a mútua
compensação dos pagamentos de importações, podendo reduzir a necessidade
da utilização de dólares nas transações internacionais e aliviar os
problemas de restrição externa, e
3) O fortalecimento de um mecanismo provedor de
divisas (como o Fundo Latino-Americano de Reserva -FLAR, que seria
fortalecido com a entrada da Argentina e do Brasil). Note-se que no
final de 2011 os dois países levantaram a possibilidade de integrar o
fundo, mas ainda não o fizeram até meados de 2013.
Ao mesmo tempo em que o CSEF promove a criação de
novos instrumentos, reinterpreta de forma construtiva as possíveis
funções dos mecanismos já existentes, como a Corporação Andina de
Fomento -CAF, o Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do
Prata -FONPLATA e o Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul FOCEM. O
Banco Interamericano de Desenvolvimento -BID, controlado pelos Estados
Unidos, é outra instituição que há décadas desempenha um papel de
liderança na região.
Finalmente, comentamos algo sobre as políticas
macroeconômicas. Não se trata, naturalmente, de defender a adoção das
mesmas iniciativas em todos os países, mas de analisar a possibilidade
de adotar medidas convergentes. Em nosso entendimento, alguns dos pontos
mais relevantes seriam os seguintes: 1) assumir uma postura centrada no
desenvolvimento econômico, à industrialização e à integração regional;
2) adotar políticas monetárias que estimulem o crescimento econômico
antes que a alta remuneração de capitais especulativos, que drenam
recursos da área produtiva e sobrevalorizam as moedas locais; 3)
priorizar a adoção de metas de crescimento e de emprego antes que as
metas de inflação e de superávit fiscal; 4) pagar a dívida social com a
maioria da população, historicamente excluída; 5) estabelecer algum
nível de controle de câmbio, de capitais e de remessas de lucros ao
exterior, como forma de diminuir a exposição financeira dos países. Deve
estar bem claro que o suposto “financiamento” via Investimento Direto
Externo (IDE) aprofunda ainda mais a dependência e a restrição externa;
6) priorizar as instituições de financiamento regionais, de comércio
compensado e a utilização de moedas locais, com a consequente redução da
dependência com relação às agências multilaterais e às moedas
internacionalmente conversíveis.
Os próximos anos podem ser definitivos para o
processo de integração regional. Passada uma década de governos
progressistas, é crucial que se consolidem essas propostas de
transformação. Para isso, a questão do financiamento é central. Neste
momento, estão dadas as condições para avançar no caminho da integração
financeira. Estão as condições econômicas (elevadas reservas
internacionais) e as condições políticas (o bom grau de confluência
entre os projetos das maiores economias da região).
Nenhum comentário:
Postar um comentário